sexta-feira, 14 de junho de 2013

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Casal gay assumido era 'impensável' na época da ditadura, diz diretora

'A memória que me contam' retrata participantes da luta armada no Brasil.

Nova geração é representada por dois jovens que são namorados.


Em “A memória que me contam”, há um grupo de amigos discutindo sua participação na luta armada no Brasil nos anos 1960 e há também um casal homossexual, representante da geração posterior. A junção de temas é proposital, de acordo com a diretora. Ao tratar do que ela chama de “questão da homossexualidade”, Lúcia Murat afirma: “Optei por trazê-la porque acho bem paradigmática disto: a nossa geração se via e era vista como libertária, quando na verdade é fruto de uma época, com todos os preconceitos dessa época”. Em entrevista ao G1 para divulgar o filme, que estreia nesta sexta-feira (21), cineasta continua com a explicação: “Você ter um casal jovem que se assume como homossexual era uma coisa impensável na minha época, diante da sociedade”.
Na produção, os namorados são vividos por Miguel Thiré e Patrick Sampaio. Os demais atores centrais são veteranos, como Irene Ravache (que faz o alter ego da própria Lúcia Murat), Otávio Augusto, Zecarlos Machado e Franco Nero (o italiano conhecido como o “Django” original). Uma exceção é Simone Spoladore, no papel de Ana. É esta a personagem que, em vias de morrer, junta os antigos colegas – como ela só aparece na lembrança deles, faz sentido que a intérprete seja uma atriz jovem.

“A ideia surgiu há mais de 20 anos, um grupo de amigos discutindo em torno de uma pessoa que estava morrendo. É um pouco inspirado num fato real que eu vivia, né?”, recorda a diretora. “Essa pessoa ficou muito doente, não conseguiu sobreviver à experiência do exílio, de tortura, teve vários surtos. Mas só começo a escrever quando ela pessoa morre... A Vera morreu no final de 2007.” Vera Sílvia Magalhães era amiga da cineasta e militou contra a ditadura militar no Brasil. Lúcia Murat conta, entretanto, que “não queria fazer um filme sobre ditadura”. “Este filme, particularmente, surgiu a partir da necessidade de falar do que estava acontecendo hoje com a gente. Obviamente, fala também sobre ditatura, porque a ditadura está dentro da gente. Não tem como fugir disso, por mais que se tenha conseguido sobreviver a ela.”
Algumas das frases de Ana em “A memória que me contam” foram originalmente ditas por Vera. Dois exemplos possíveis, segundo Lúcia Murat: “Os que se suicidaram tiveram uma lucidez enorme” e “A minha identidade se foi nesta história de revolução perdida”. Perguntada se concorda com a segunda avaliação, a diretora responde: “Acho que, em relação que se pretendia, sim [houve derrota]. Trabalhava-se numa utopia total, de um mundo novo, um homem novo, um país totalmente igualitário. A gente foi totalmente derrotado, exterminado. Até o final dos anos 70, todas as organizações armadas foram exterminadas. Os poucos que sobreviveram foram para o exterior”.

Por outro lado, Lúcia comenta que “de maneira nenhuma” se acha derrotada. “Ao contrário, me considero uma vitoriosa, no sentido de que estou viva, os torturadores estão sendo lentamente investigados.” Já Simone Spoladore diz achar “interessante que o filme esteja sendo lançado agora, que tem Dilma como presidenta e com a Comissão da Verdade”.
A atriz se lembra de que “A memória que me contam” modificou sua percepção do período da ditadura. “Meus pais não tiveram relação com a luta armada nessa época, eles viviam mais no interior do Brasil”, justifica. “Eu sabia que tinha acontecido, claro. Mas os anos 1960, para mim, tinham sido há milênios, tanto tempo...” . Para ela, o trabalho no filme “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006) já havia contribuído para uma mudança de entendimento. “Tinha uma distância muito grande desse tema, e não estava muito presente nas minhas aulas, no colégio e tal. Foi a partir do meu trabalho de atriz que me aproximei. Fazendo este filme, descobri que isso aconteceu ontem ou cinco minutos atrás.”
Na comparação entre as duas gerações, Lúcia Murat retoma o assunto inicial. “Você tem comportamentos hoje que são um grande avanço”, observa, contrapondo a situação atual à de décadas atrás. “Mas, claro, os anos 1960 mudaram tudo. Imagina: eu fui criada para casar virgem.”

FONTE: G1